App quer unir diagnóstico, terapia e IA aos cuidados de saúde mental no SUS-radardasaude

Joabe Antonio de Oliveira

06/09/2025

No Brasil, cerca de 10,2% dos adultos apresentam sintomas de depressão, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Ainda assim, apenas um em cada quatro recebe algum tipo de atendimento (e na maioria dos casos, o tratamento é feito apenas na base dos medicamentos, sem consultas psicoterapêuticas constantes). A conta não fecha e o resultado, além do sofrimento mental cada vez maior, são as longas filas por consultas com psiquiatras.

Recentemente, uma iniciativa surgiu com o objetivo de mudar esse cenário. O Centro de Pesquisa e Inovação em Saúde Mental (CISM), em parceria com o Hospital das Clínicas da USP, quer criar o “e-Saúde Mental no SUS”: uma plataforma digital que coloca diagnóstico, monitoramento e início de tratamento de transtornos como ansiedade, insônia e depressão ao alcance de qualquer celular.

“Usar recursos digitais é uma forma de melhorar essa situação, porque a intervenção pode estar em qualquer lugar do planeta”, explica o psiquiatra Paulo Rossi Menezes, diretor científico do CISM, para a Super. “Ela pode alcançar áreas remotas, mas também grandes centros urbanos, onde o deslocamento até um serviço de saúde muitas vezes é inviável”.

A iniciativa se insere em um movimento global de modernização da saúde pública, no qual a tecnologia não substitui, mas potencializa o trabalho humano, ampliando o acesso e a democratização ao tratamento da saúde mental.

Da teoria à prática

Ao baixar o aplicativo, o usuário responderá questionários cientificamente validados que ajudam a identificar sintomas. As informações vão direto para o prontuário eletrônico do SUS, permitindo que médicos e enfermeiros acompanhem a evolução do paciente.

Mas não é só diagnóstico. O app também oferecerá técnicas simples de regulação emocional, como exercícios inspirados na terapia cognitivo-comportamental (TCC). Rossi lembra que esse modelo já foi testado com sucesso no Conemo (Controle Emocional), aplicativo para pacientes com sintomas de depressão desenvolvido há alguns anos. 

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Na época, o app passou por um estudo clínico para avaliar os resultados da intervenção da tecnologia. As informações coletadas foram armazenadas em nuvem para que os profissionais de enfermagem acompanhassem o progresso dos pacientes.

O estudo ocorreu em São Paulo (880 participantes em 20 unidades de saúde) e em Lima, no Peru (420 participantes). Em cada cidade, metade formou o grupo controle, recebendo apenas tratamento clínico e medicamentoso, enquanto a outra metade utilizou o aplicativo Conemo por seis semanas, com três sessões de 10 minutos com a ferramenta por semana.

O app oferecia informações sobre sintomas da depressão e sugeria atividades simples a serem realizadas entre as sessões, como ouvir música, caminhar ou ligar para um parente. O resultado, publicado em um artigo na revista científica Journal Of American Medical Association, mostra que, ao final de três meses, os usuários do Conemo tiveram uma redução de 50% dos sintomas de depressão leve. 

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“O que fizemos foi montar sessões curtas que, ao longo de algumas semanas, ajudavam a pessoa a retomar atividades do dia a dia. Isso melhora o humor e quebra o ciclo da depressão. Hoje sabemos que é perfeitamente possível oferecer esse tipo de cuidado digitalmente para quem não teria acesso de outra forma”, conta o professor.

A tecnologia não substitui o tratamento humano à saúde mental

Em tempos em que se discute o papel da inteligência artificial em áreas sensíveis e que, mais do que nunca, ela parece invadir o tratamento de saúde mental por meio de “conversas terapêuticas” com IAs, Rossi faz questão de diferenciar: o “e-Saúde Mental” não é um chatbot ou um substituto de terapeuta.

“Nós não estamos propondo a troca do ser humano pela máquina. Estamos propondo que o ser humano use a máquina a seu favor”, resume. “Então, não, não é um Chat GPT”.

Para o professor, casos recentes em que pessoas usam as ferramentas de IA generativas para tratar saúde mental, inclusive os casos extremos que resultam em suicídio, pecam por não ter nenhum tipo de vínculo ao sistema de saúde. “A IA, que recomenda que pessoas procurem ajuda de humanos várias vezes, não tem um mecanismo para que essa ação tome forma”, explica. “Porque é desvinculado do sistema de saúde. A plataforma que a gente vai desenvolver é vinculada ao SUS.”

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Se implementada, a IA terá função de apoio: para os profissionais da saúde, poderá sugerir diagnósticos prováveis, indicar condutas terapêuticas e identificar riscos de agravamento. Se um questionário indicar sintomas moderados ou graves, por exemplo, o aplicativo poderá sugerir tanto exercícios de autocuidado quanto a necessidade de uma consulta médica.

A inovação também chega ao nível da gestão pública. Os dados coletados pela plataforma, após serem anonimizados, vão gerar relatórios e painéis interativos para os gestores do SUS, revelando padrões regionais de saúde mental e a eficácia das intervenções.

“Hoje nós não temos informações sistematizadas sobre saúde mental, como temos para doenças crônicas”, explica Rossi. “Com essa plataforma, gestores poderão ver o que acontece em seus territórios, identificar desigualdades e melhorar a qualidade do atendimento”.

Além de aumentar o acesso, o projeto deve aliviar a sobrecarga do sistema público. Estudos do CISM estimam que a adoção nacional do “e-Saúde Mental” pode gerar economia de até 70% nos custos com transtornos mentais, reduzindo internações e consultas de alta complexidade que não foram diagnosticadas previamente, quando o caso ainda era de “baixo impacto”.

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“Se conseguirmos aumentar o diagnóstico precoce e iniciar tratamentos mais rapidamente, reduziremos o tempo em que a população vive com sofrimento mental. Isso melhora a qualidade de vida, mas também traz impacto social e econômico”, diz Rossi.

Um futuro próximo, mas não imediato

O desenvolvimento da plataforma levará cerca de um ano e meio. Depois, o Ministério da Saúde irá avaliar o produto e os resultados dos testes para, então, decidir os próximos passos se incluirão novos testes ou já farão um planejamento de incorporação da plataforma. O plano inclui ainda adaptações para diferentes contextos culturais, como comunidades indígenas na Amazônia, onde a escassez de especialistas é ainda maior.

“Quando olhamos para países de renda média e baixa, como o Brasil, percebemos que não há profissionais suficientes para atender a essa demanda enorme — e ainda existe uma distribuição desigual, que penaliza regiões mais vulneráveis”, diz Rossi. 

Mas a implementação em nível nacional pode demorar até 10 anos. O app e o time de engenheiros por trás da plataforma devem se posicionar em uma constante corrida  para se atualizar de novos estudos sobre saúde mental, Brasil e, o assunto do momento, inteligências artificiais – principalmente quando ligadas aos transtornos psicológicos.

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