São Paulo
Um estudo em parceria entre a Fiocruz e o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, publicado na revista Nature Human Behaviour, indica que o Bolsa Família ajudou a diminuir os casos e as mortes por Aids entre mulheres pobres no Brasil. A pesquisa concluiu que o programa de transferência de renda está associado a reduções de incidência de Aids e morte pela doença, na comparação com pessoas que não eram beneficiárias.
Os resultados mostraram queda de 47% na incidência da doença e de 55% na mortalidade entre filhas de beneficiárias. Entre as mães, a redução foi de 42% e 43%, respectivamente. Os números foram observados ao monitorar a ocorrência de novos casos de Aids e mortes relacionadas à doença nessa população.
Foram analisados dados de 12,3 milhões de mulheres por um período de nove anos, cruzando informações do Cadastro Único com registros de saúde e mortalidade do Ministério da Saúde. O subgrupo estudado foi composto por 10,9 milhões de mães e 1,4 milhão de filhas, tratados de forma independente. No caso das filhas, o estudo excluiu situações de transmissão do HIV da mãe para o bebê na gestação ou no parto.
Segundo os pesquisadores, entre mães em situação de pobreza extrema, de cor parda ou preta a redução na incidência de Aids foi de 53%, e de 51% na mortalidade.
Para Andrea Ferreira Silva, autora do estudo e pesquisadora de impacto de políticas públicas, isso mostra a importância de considerar a “interseccionalidade das vulnerabilidades”, quando pobreza, raça e gênero se combinam e ampliam riscos. “Essas mulheres são as mais expostas ao Bolsa Família e também as mais vulneráveis ao adoecimento. O programa funcionou como uma proteção adicional para elas.”
Amara (nome fictício), 40, mora em Camaçari (BA). Autodeclarada preta, ela é beneficiária do Bolsa Família desde 2021 e descobriu o HIV em 2024, mas não desenvolveu a Aids. Porém, nos dias de tratamento, precisa faltar ao serviço em um comércio local e perde a renda. Como trabalhadora informal, os patrões não aceitam atestados médicos. “Estou indo a pé, para economizar no transporte.”
A descoberta da infecção também provocou mudanças na vida pessoal de Amara. “Eu me separei depois do diagnóstico. Meu ex-marido me traiu e me passou o vírus”, conta. Desde então, enfrenta sozinha a rotina e o sustento dos três filhos.
A experiência do Projeto Criança Aids (PCA), que acompanha famílias em situação de vulnerabilidade com crianças vivendo com HIV, ilustra como o Bolsa Família se traduz na vida dessas mulheres.
Segundo Adriana Galvão Ferrazini, presidente do PCA, entre as 20 famílias atendidas pela ONG, 12 recebem o benefício. Destas, todas são pretas ou pardas de escolaridade baixa. “Entendemos que o programa impacta diretamente as pessoas que têm essas condições.”
De acordo com Laio Magno, coautor da pesquisa e doutor em Saúde Pública, o efeito pode ser explicado tanto pela transferência de renda, que melhora a alimentação e reduz situações de risco, quanto pelas condicionalidades do programa, como o acompanhamento em saúde e a exigência de vacinação e pré-natal.
“O Bolsa Família não é só dinheiro. Ele aproxima as mulheres dos serviços de saúde e isso contribui para o diagnóstico e tratamento precoce.”
O trabalho também destaca que mulheres com maior escolaridade se beneficiam mais dos efeitos do programa. A redução na incidência de Aids chegou a 56% entre as mães de extrema baixa renda, de cor parda ou preta e com maior escolaridade. Já a mortalidade nesse grupo caiu 55%. Para os pesquisadores, a educação potencializa o uso dos recursos, melhora a adesão ao tratamento e fortalece a autonomia.
Ferrazini concorda que a informação é decisiva. “Quando uma mulher entende que HIV é diferente de Aids e terapia antirretroviral garante qualidade de vida, ela terá mais chance de manter a carga viral indetectável e evitar a progressão da doença.”
A pesquisa reconhece a impossibilidade de obter dados diretos sobre os comportamentos sexuais de risco das mulheres como uma limitação do estudo. Para contornar, os pesquisadores utilizaram uma combinação de abordagens metodológicas.
Os cientistas ajustaram os dados às diferenças regionais e também analisaram mulheres de renda mais alta dentro do CadÚnico, que em geral não eram beneficiárias do Bolsa Família. Nesses grupos, não houve redução nos casos ou mortes por Aids. Assim, a redução da doença entre as mais pobres se mostrou ligada ao programa, e não a coincidências.
Segundo os pesquisadores, os resultados reforçam a importância de políticas de transferência de renda para a saúde pública. “Outras pesquisas também já apontaram efeitos positivos do Bolsa Família na tuberculose, na mortalidade infantil e na saúde mental”, afirma Magno.
Ferrazini acrescenta que o benefício funciona como rede de proteção para as mães que vivem de trabalhos informais, como venda de comida ou faxinas. “Quando essas mulheres ou seus filhos adoecem, elas podem passar meses sem conseguir trabalhar. Nesses momentos, é o Bolsa Família que garante a sobrevivência da família.”
Esta reportagem foi produzida durante o 10º Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha, patrocinado pelo Laboratório Roche e pelo Einstein Hospital Israelita.
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