Classificação do Diabetes: Guia Completo para Diagnóstico Diferencial
Autoria: Joabe Antonio de Oliveira | Revisão: Dr. José Henrique Tamburini
A classificação adequada do diabetes mellitus (DM) é fundamental para o tratamento correto e a definição de estratégias de rastreamento de comorbidades e complicações crônicas. Este artigo apresenta um guia completo baseado nas diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) para a classificação do diabetes, incluindo os diferentes tipos, métodos de diagnóstico diferencial e recomendações práticas para profissionais de saúde.
Introdução
A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) recomenda a classificação baseada na etiopatogenia do diabetes, que compreende o diabetes tipo 1 (DM1), o diabetes tipo 2 (DM2), o diabetes gestacional (DMG) e outros tipos específicos de diabetes. Além dessa classificação tradicional, outras abordagens têm sido propostas, considerando características clínicas como momento do início do diabetes, história familiar, função residual das células beta, índices de resistência à insulina, risco de complicações crônicas, grau de obesidade, presença de autoanticorpos e características sindrômicas.
Principais Tipos de Diabetes
Diabetes Tipo 2 (DM2)
O DM2 é o tipo mais comum de diabetes, frequentemente associado à obesidade e ao envelhecimento. Tem início insidioso e é caracterizado por resistência à insulina e deficiência parcial de secreção de insulina pelas células β pancreáticas, além de alterações na secreção de incretinas. Apresenta frequentemente características clínicas associadas à resistência à insulina, como acantose nigricans e hipertrigliceridemia.
Diabetes Tipo 1 (DM1)
O DM1 é causado por destruição das células β, geralmente autoimune, o que leva a uma deficiência grave da secreção de insulina. Embora seja o tipo mais comum de DM em crianças e adolescentes, dados recentes indicam que atualmente há mais casos novos de DM1 diagnosticados na vida adulta do que na infância e adolescência. A apresentação clínica clássica do DM1 geralmente é abrupta, com maior propensão à cetose e cetoacidose, necessidade de insulinoterapia plena desde o diagnóstico ou após curto período.
Outros Tipos de Diabetes
Além do DM1 e DM2, existem diversas outras formas de diabetes que requerem abordagem específica:
| Tipo de Diabetes | Características Principais | Abordagem Diagnóstica |
|---|---|---|
| Diabetes Gestacional (DMG) | Hiperglicemia detectada pela primeira vez durante a gestação | Teste de tolerância oral à glicose entre 24-28 semanas |
| Diabetes Monogênico (MODY) | Forma de diabetes com herança autossômica dominante, início antes dos 25 anos | Testes genéticos, história familiar, anticorpos negativos |
| Diabetes Neonatal | Hiperglicemia persistente nos primeiros 6 meses de vida | Painel genético para mutações específicas |
| Diabetes Mitocondrial | DM associado à surdez ou oftalmoplegia, herança materna | Teste genético para mutação m.3243 A>G |
| LADA (Diabetes Autoimune Latente do Adulto) | DM autoimune de progressão lenta em adultos | Anticorpos positivos, não necessidade de insulina por ≥6 meses |
| Diabetes Secundário (Tipo 3c) | DM secundário a doenças pancreáticas | Imagem e testes de função pancreática, anticorpos negativos |
Abordagem Diagnóstica e Exames Complementares
R1 – O diagnóstico diferencial entre DM1 e DM2 deve ser considerado apenas em bases clínicas. Exames complementares específicos só são necessários quando há dúvidas em relação ao diagnóstico.
Autoanticorpos
Em casos de suspeita clínica de DM1 em adultos, é recomendada a solicitação de autoanticorpos. O resultado positivo confirma o diagnóstico de DM1. Os anticorpos mais úteis incluem anti-GAD, anti-IA2, anti-ZnT8 e anti-insulina (este último menos frequente em adultos). A pesquisa de anticorpos é mais sensível quando feita ao diagnóstico ou nos primeiros 3 anos seguintes.
Nota importante: Logo após o início da insulinoterapia (5 a 7 dias), a maior parte dos pacientes desenvolvem anticorpos contra a insulina exógena, podendo haver interferência no teste do anticorpo anti-insulina.
Dosagem de Peptídeo C
Em caso de dúvida diagnóstica quanto à classificação do DM com autoanticorpos negativos, é recomendada a dosagem de peptídeo C randômico. Se o peptídeo C randômico estiver < 0,6 ng/ml, no paciente com cinco anos ou mais de duração do DM, a classificação deverá ser DM tipo 1B. Caso o peptídeo C esteja > 0,6 ng/ml, DM2 ou diabetes monogênico devem ser considerados.
Casos Especiais e Suas Características
Diabetes Monogênico (MODY)
É recomendado suspeitar de diabetes monogênico em pacientes com hiperglicemia de início antes dos 25 anos de idade, com diabetes surgindo na família antes dos 25 anos em duas ou três gerações. Os autoanticorpos devem ser negativos e o peptídeo C > 0,6 ng/mL, após 5 anos do diagnóstico de DM.
| Tipo de MODY | Características |
|---|---|
| MODY-GCK | Mais comum. Hiperglicemia de jejum leve, assintomática, não progressiva |
| MODY-HNF1A | Hiperglicemia de início na infância/adolescência. Boa resposta às sulfonilureias |
| MODY-HNF4A | Boa resposta às sulfonilureias. Associação com macrossomia fetal e hipoglicemia neonatal |
| MODY-HNF1B | Malformações urogenitais, cistos renais. Em 50% dos casos pode não haver história familiar |
Diabetes Neonatal
É recomendado o rastreamento genético associado ao diabetes neonatal para todas as crianças com hiperglicemia detectada antes dos 6 meses de idade, sem causa secundária evidente. A solicitação de painel genético para DMN proporciona a confirmação diagnóstica em mais de 80% dos casos.
Diabetes Mitocondrial
Teste genético para diagnóstico de diabetes mitocondrial é recomendado em casos de DM com surdez ou oftalmoplegia progressiva, de herança materna. A forma mais comum é causada pela mutação m.3243 A>G no DNA mitocondrial.
Nota importante: Pacientes com diabetes mitocondrial devem evitar uso de metformina, pelo risco potencial de acidose metabólica.
Abordagem AABBCC para Classificação do Diabetes
O sistema AABBCC tem sido proposto para auxiliar no diagnóstico diferencial entre DM1 e DM2:
| Componente | Avaliação |
|---|---|
| A – Age (Idade) | Diabetes autoimune é mais frequente em pacientes < 50 anos. Em pacientes com diagnóstico < 35 anos, considerar diabetes monogênico |
| A – Autoimunidade | Anticorpos positivos? História de autoimunidade (tiroideana, doença celíaca, etc)? |
| B – BMI (IMC) | Obesidade é característica de DM2, mas não exclui DM1 (40% ou mais dos adultos com DM1 têm excesso de peso) |
| B – Background (Origem) | História familiar de DM em múltiplas gerações? História familiar de DM1 ou autoimunidade? |
| C – Controle | Controle do DM piora com terapias não insulinicas? Peptídeo C baixo? Necessidade de insulina nos primeiros 3 anos? |
| C – Comorbidades | Presença de comorbidades cardíacas ou renais impactam na abordagem terapêutica |
Perguntas Frequentes (FAQ)
O diabetes tipo 1 é uma doença autoimune caracterizada pela destruição das células beta pancreáticas, levando à deficiência absoluta de insulina. Já o diabetes tipo 2 é caracterizado principalmente por resistência à insulina associada a uma deficiência relativa de insulina. Enquanto o DM1 geralmente se manifesta de forma abrupta e requer insulinoterapia desde o diagnóstico, o DM2 tem início insidioso e pode ser inicialmente controlado com mudanças no estilo de vida e medicamentos orais.
Deve-se suspeitar de MODY em pacientes com hiperglicemia de início antes dos 25 anos, história familiar de diabetes em duas ou três gerações (também com início antes dos 25 anos), autoanticorpos negativos e peptídeo C detectável (>0,6 ng/ml) após cinco anos do diagnóstico. A calculadora de probabilidade de MODY (disponível em diabetesgenes.org) pode auxiliar na avaliação do risco.
LADA (Latent Autoimmune Diabetes in Adults) é uma forma de diabetes autoimune de progressão lenta em adultos. Os critérios para diagnóstico incluem: idade de diagnóstico > 30 anos, anticorpos positivos (especialmente anti-GAD) e ausência de necessidade de insulina por pelo menos 6 meses após o diagnóstico. Diferencia-se do DM2 pela presença de autoanticorpos, IMC geralmente mais baixo e progressão mais rápida para necessidade de insulinoterapia.
A dosagem de peptídeo C é particularmente útil no diagnóstico diferencial entre DM1 e DM2 quando há dúvidas após a avaliação clínica e dosagem de autoanticorpos. É mais valiosa após 3-5 anos de duração da doença, quando pacientes com DM1 tipicamente apresentam peptídeo C < 0,6 ng/ml, enquanto aqueles com DM2 ou diabetes monogênico mantêm níveis mais elevados. A dosagem deve ser feita com diabetes razoavelmente controlado, preferencialmente fora do jejum.
Conclusão
A classificação adequada do diabetes é fundamental para o manejo correto da doença. Embora na maioria dos casos as características clínicas sejam suficientes para a diferenciação entre os principais tipos de diabetes, em situações de dúvida, exames complementares como dosagem de autoanticorpos e peptídeo C podem ser necessários. O sistema AABBCC oferece uma abordagem prática para auxiliar no diagnóstico diferencial. Casos atípicos ou com características sugestivas de formas específicas de diabetes (como MODY, diabetes mitocondrial ou LADA) requerem investigação mais aprofundada, incluindo eventualmente testes genéticos.
Referências: Sociedade Brasileira de Diabetes. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2023). Classificação do diabetes. Autores: Melanie Rodacki, Milena Teles, Monica Gabbay, Rodrigo Lamounier. Editor de Seção: Renan Montenegro. Editor Chefe: Marcello Bertoluci.
📊 INFOGRÁFICO: CLASSIFICAÇÃO DO DIABETES MELLITUS
A classificação do diabetes mellitus (DM) é baseada na etiologia e patogênese, fundamental para o direcionamento do tratamento e das estratégias de rastreamento de complicações crônicas [2]. A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) recomenda a classificação baseada na etiopatogenia [2].
I. CLASSIFICAÇÕES PRINCIPAIS
1. DIABETES TIPO 1 (DM1)
- **Patogênese:** Causado pela **destruição das células beta**, sendo geralmente de origem autoimune, levando a uma deficiência grave na secreção de insulina [3]. Também pode ser Idiopático [4].
- **Apresentação:** Classicamente abrupta, com maior propensão à cetose e cetoacidose [3].
- **Tratamento:** Necessidade de **insulinoterapia plena** desde o diagnóstico ou após um curto período [3].
- **Diagnóstico:** Pode ser diagnosticado em qualquer idade, embora dados recentes indiquem mais casos novos em adultos do que em crianças e adolescentes [3].
2. DIABETES TIPO 2 (DM2)
- **Patogênese:** Caracterizado por **resistência à insulina** e deficiência parcial da secreção de insulina pelas células beta pancreáticas, além de alterações na secreção de incretinas [3].
- **Prevalência:** É o tipo mais comum [3].
- **Associações:** Frequentemente associado à obesidade e ao envelhecimento [3].
- **Sinais Clínicos:** Início insidioso [3]. Pode apresentar características clínicas associadas à resistência à insulina, como acantose nigricans e hipertrigliceridemia [3].
3. DIABETES GESTACIONAL (DMG)
Definido como intolerância aos carboidratos de gravidade variável que se inicia ou é detectada pela primeira vez durante a gestação [4, 5].
O rastreamento para DMG deve ser realizado entre a 24ª e 28ª semana de gestação através do Teste Oral de Tolerância à Glicose (TOTG) com 75g de glicose anidra [6].
4. OUTROS TIPOS DE DIABETES
Esta é uma categoria heterogênea [4]. Inclui:
- Defeitos monogênicos na função das células beta (ex: MODY, Diabetes neonatal) [4].
- Defeitos genéticos na ação da insulina (ex: Síndrome de resistência à insulina tipo A, Leprechaunismo, Síndrome de Rabson-Mendenhall, Diabetes lipoatrófico) [4].
- Diabetes secundário a doenças do pâncreas exócrino (ex: Pancreatite, Fibrose cística, Hemocromatose) [7].
- Diabetes secundário a endocrinopatias (ex: Acromegalia, Síndrome de Cushing, Hipertireoidismo) [7].
- Diabetes induzido por drogas (ex: Glicocorticoides, Tiazídicos) [7].
- Formas incomuns de DM imunomediado (ex: Síndrome da pessoa rígida) [8].
II. SUBTIPOS ESPECÍFICOS E CONDIÇÕES RELACIONADAS
Diabetes Autoimune Latente do Adulto (LADA)
É uma forma autoimune lentamente progressiva, com características de DM1 e DM2 sobrepostas [9]. O diagnóstico é recomendado para adultos com diabetes e anticorpos positivos que não necessitam de insulina por pelo menos seis meses após o diagnóstico [10, 11].
- **Critérios de Suspeita:** Idade de diagnóstico > 30 anos; anticorpos positivos (mais comum anti-GAD); ausência de necessidade de insulina por pelo menos 6 meses após o diagnóstico [9].
Diabetes Monogênico (MODY)
A forma monogênica mais comum de DM é o MODY, de herança autossômica dominante [12].
Recomenda-se suspeitar de MODY em pacientes com hiperglicemia de início **antes dos 25 anos de idade** e história familiar de diabetes surgindo antes dos 25 anos em duas ou três gerações [11].
| Tipo de MODY | Características Chave |
|---|---|
| **MODY-GCK** | Mais comum. Hiperglicemia de jejum leve, assintomática e não progressiva [13]. |
| **MODY-HNF1A / MODY-HNF4A** | Comuns. Apresentam boa resposta às sulfonilureias [13, 14]. |
| **MODY-HNF1B** | Pode não haver história familiar em cerca de 50% dos casos [15]. Associado a malformações urogenitais e cistos renais [15]. |
Diabetes Neonatal (DMN)
Hiperglicemia persistente que se inicia nos primeiros seis meses de vida [16]. É recomendado o rastreamento genético para todas as crianças com hiperglicemia detectada antes dos 6 meses de idade, sem causa secundária evidente [11, 16].
III. CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS LABORATORIAIS
O diagnóstico de DM é estabelecido pela identificação de hiperglicemia [17]. Se somente um exame estiver alterado, este deverá ser repetido para confirmação [18].
| Teste Laboratorial | Normal | Pré-Diabetes | DM (Critério) |
|---|---|---|---|
| **Glicemia de Jejum (GJ)** (mg/dL) | < 100 | 100–125 | ≥ 126 |
| **HbA1c** (%) | < 5,7 | 5,7–6,4 | ≥ 6,5 |
| **TTGO - 2h** (mg/dL) | < 140 | 140–199 | ≥ 200 |
| **TTGO - 1h** (mg/dL) | < 155 | 155–208 | ≥ 209 |
| **Glicemia ao Acaso** (mg/dL) + Sintomas | - | - | ≥ 200 |
O diagnóstico de DM pode ser estabelecido se houver GJ $\ge$ 126 mg/dL e HbA1c $\ge$ 6,5%, simultaneamente [19].
Sinais Típicos de Hiperglicemia [18]
- Poliúria
- Polidipsia
- Polifagia
- Perda de peso inexplicada