Suzane Durães, VPAAPS/Fiocruz
Os primeiros registros de presença humana no Cerrado são de 12 mil anos. Hoje, cerca de 30 milhões de brasileiros habitam o bioma, incluindo indígenas, quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, apanhadoras de flores sempre vivas, vazanteiros, entre outros. Para discutir os direitos da população cerratense e a preservação do bioma, mais de 10 mil pessoas participaram do XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, em Brasília. O evento, conhecido como a COP do Cerrado, tem ganhado espaço no cenário socioambiental. A Fiocruz foi uma das promotoras do encontro.
Junto com a Rede Cerrado, a Fiocruz promoveu a mesa Saúde e mudança do clima nos territórios do Cerrado: ecos das mulheres para a COP30. Para a quilombola e a vice-coordenadora da Rede Cerrado, Lucely Pio, o ser humano se distanciou da natureza e isso tem gerado várias doenças. “Hoje, tem criança de 6 anos com ansiedade. A terra, a água e o ar fazem parte do nosso corpo. As pessoas estão doentes emocionalmente porque distanciaram da natureza”, afirmou. Lucely também defendeu a aprovação de leis que preservem o conhecimento tradicional, a medicina tradicional e o modo de vida dos territórios. O evento foi realizado de 10 a 13 de setembro.
A vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira e Silva, ressaltou a necessidade de buscar uma ciência cidadã e valorizou os saberes populares. “O saber mais importante não está dentro das universidades, mas nos povos que vivem em contato com a natureza. Esse conhecimento é matricial, é das mulheres. Temos que buscar a ciência cidadã, que faça bem ao próximo. A atual gestão da Fiocruz tem mudado a visão do conhecimento, em que todos são valorizados”, disse.
A coordenadora do LabClima do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás, Gislaine Luiz, defendeu a necessidade de se olhar para o local quando se trata de mudanças climáticas. “É no território que os efeitos climáticos se manifestam com mais força e afetam principalmente as populações vulneráveis”. Para ela, é urgente romper com a narrativa da invisibilidade do Cerrado. “As emergências climáticas escancararam as desigualdades. Os povos do Cerrado precisam estar na COP30. A COP é global, mas precisa ecoar as vozes locais”, afirmou.
A mesa foi coordenada pelo pesquisador Guilherme Franco Netto, responsável pelo Programa de Saúde, Ambiente e Sustentabilidade (FioProsas/Fiocruz). Segundo ele, a Fundação tem desenvolvido diversas iniciativas relacionadas ao bioma, como o projeto Fiocruz Cerrados, que visa fortalecer a articulação entre a sociedade, o governo e o setor produtivo. O projeto mapeou a sociobiodiversidade e as iniciativas de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no Cerrado, para identificar soluções que promovam a justiça social, a democracia e a preservação ambiental.
Para Franco Netto, foi sábio e oportuno denominar o XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado como a COP do Cerrado. “O debate promovido pelas comunidades e a rica programação expressam todo o movimento que ocorre nos territórios da região e evidenciam que a mudança climática é um processo em curso, marcado pelo aumento da temperatura e por períodos prolongados de seca e calor intenso, associado não só às queimadas, mas também a incêndios criminosos e o desmatamento, que traz uma preocupação muito grande com a própria existência da vida como um todo no Cerrado”, ressaltou.
Segundo Guilherme, é importante reconhecer que o país está diante de uma potência emergente. Os povos originários e as comunidades tradicionais do Cerrado são capazes de expressar a sua resistência e a sua forma de ser, contribuindo para uma luta ampla contra a mudança climática e pela defesa da sociobiodiversidade dos territórios brasileiros.
Histórico do encontro
De acordo com Irene Maria dos Santos, do Instituto Brasil Central (Ibrace) — uma das entidades fundadoras da Rede Cerrado —, o Encontro e Feira dos Povos do Cerrado surgiu após a ECO-92 e a partir de questionamentos sobre quem eram os povos do Cerrado. “Na época, nós, da Rede Cerrado, não soubemos responder. Então, elaboramos uma pesquisa que mapeou as entidades que compunham o Cerrado. Tivemos o retorno de 60 entidades e disso surgiu a ideia de fazer um encontro. O primeiro aconteceu foi no ano 2000, em Goiânia”, explicou.
Segundo Irene, ao longo dos anos o evento superou diversos desafios, como a necessidade de melhorar a apresentação dos produtos comercializados pelos produtores. No entanto, ela aponta que, apesar da consolidação do encontro, os problemas persistem quando os participantes retornam para suas comunidades.
“Os agricultores e agricultoras continuam sem ter onde vender seus produtos nos locais onde vivem. Além disso, as comunidades estão cada vez mais encurraladas, sem ter para onde ir. Falta incentivo do governo, o uso de veneno duplicou ou triplicou… Os problemas continuam”, destacou Irene.
Reconhecido como a savana mais biodiversa do planeta, o Cerrado abriga uma imensa variedade de espécies vegetais e animais, incluindo 12.829 espécies de plantas nativas catalogadas, e concentra cerca de 30% da biodiversidade brasileira. No entanto, o bioma já perdeu mais de 50% de sua cobertura original. Apesar disso, seus povos seguem resistindo, lutando pela preservação do território e de seus modos de vida.
Foram quatro dias de intensos debates sobre sociobiodiversidade, medicina tradicional, conhecimento cultural, crise climática e luta em defesa do Cerrado. Ao longo do evento, a equipe do projeto Fiocruz Cerrados esteve presente acompanhando as atividades e fortalecendo o diálogo com os povos cerratenses e instituições parceiras.
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Imagem: Foram quatro dias de intensos debates sobre sociobiodiversidade, medicina tradicional, conhecimento cultural, crise climática e luta em defesa do Cerrado (Foto: VPAAPS/Fiocruz)
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