Por Bruna Abinara, no Informe Ensp
“Não há como falar de soberania sem falar de comida.” A conexão entre o acesso à alimentação de qualidade e a construção de um Brasil soberano foi o foco da mesa “Insegurança Alimentar e Saúde Pública: desafios em tempos de emergências climáticas”. Realizado nesta quinta-feira (4/9), o evento expandiu o debate sobre a saúde em relação à “Soberania Nacional e Democracia”, mote da celebração do aniversário de 71 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). A atividade está disponível no canal da ENSP no Youtube; assista!
Moderador da mesa, o diretor da ENSP destacou que o tema da insegurança e dos sistemas alimentares está interligado com a discussão do conceito ampliado de saúde, assim como a soberania nacional e a democracia. Marco Menezes considerou o diálogo com os movimentos sociais e com a sociedade como estratégico para a Fiocruz. Com o início de um novo ciclo de gestão e a realização de um Congresso Interno, apontou que a instituição tem a oportunidade de se reposicionar e reafirmar seu compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. O diretor celebrou a saída do Brasil do Mapa da Fome, mas ressaltou que ainda há 28 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Dentre os desafios a avanços, apontou a retomada de políticas públicas, questionou o acesso a comida de qualidade e a apropriação do orçamento público.
“Estamos fazendo alguns movimentos importantes na Fiocruz. Recentemente, tivemos o 5° Seminário de Saúde, Ambiente e Sustentabilidade, que articulou institucionalmente as diferentes áreas da Fiocruz nessa discussão. Temos a iniciativa da nossa Feira Agroecológica Josué de Castro, além de uma série de outras ações, como as do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz). Ainda assim, precisamos aprofundar muito o debate da agroecologia como um caminho importante na entrada da formação, na pós-graduação, nos currículos. Queria destacar essa série de atividades para dizer também do nosso papel na implementação das políticas”, avaliou Menezes.
A integrante do Grupo de Pesquisa em Agriculturas Emergentes e Alternativas (ESALQ/USP) Vitória Leão apresentou um panorama sobre mudança climática, agricultura familiar e políticas públicas. “A década de 2015 a 2024 foi a mais quente já registrada e, em mais da metade do ano passado, as temperaturas médias globais estiveram 1,5°C acima da linha de base”, expôs. A doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CDPA/UFRRJ) explicou que o cenário de crise climática gera eventos extremos cada vez mais frequentes, o que, por sua vez, afeta a agricultura, a produção florestal e a pesca. A pesquisadora mostrou que as perdas na produção podem causar altas de até 80% nos preços e, no último ano, foram responsáveis por mais de dois pontos percentuais no aumento de 8,22% na inflação de alimentos no Brasil. Como consequência, cai o acesso da população à comida.
Leão apontou que a agropecuária é o principal vetor de mudanças climáticas, pois promove uma mudança de uso da terra marcada pelo desmatamento. “Esse modelo tem se mostrado autodestrutivo de diversas maneiras, pensando na relação direta entre as mudanças climáticas que o setor gera e os efeitos no setor”, considerou. Ainda assim, a convidada reforçou que os prejuízos mais intensos são sentidos na vida de povos indígenas, ribeirinhos e agricultores familiares, que são dependentes da natureza e da atividade agrícola. Ela ressaltou que, embora a insegurança alimentar tenha arrefecido nos últimos anos, a população rural continua mais vulnerável. Apesar dos obstáculos, a pesquisadora defendeu que há esperança e apresentou exemplos concretos de ações que incentivam e protegem a produção agrícola sustentável. “Diante desse cenário tão calamitoso, dos enormes desafios de acesso às políticas públicas, existem muitas coisas acontecendo, caminhos possíveis e todos eles passam pelo fortalecimento da participação da sociedade civil”, concluiu.
“Qual é o CID (Classificação Internacional de Doenças) da fome?” Foi a partir dessa provocação que a pesquisadora Juliana Casemiro, integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), iniciou sua fala. Segundo a sanitarista, os profissionais de saúde se deparam com a fome em seu cotidiano. Casemiro, que também é integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) apresentou uma linha histórica da criação dos três Planos de Segurança Alimentar e Nutricional do Brasil, construídos sob a condução do órgão, e ressaltou que “é preciso sempre lembrar do desmonte que tivemos” com a extinção do Consea entre 2019 e 2023.
A pesquisadora ainda comentou que, para além das políticas públicas, é fundamental ter um contexto econômico e político favorável, que ajude a sustentar as medidas. Ela alertou que, embora o Brasil tenha saído do Mapa da Fome, ainda há 4% de domicílios em situação de insegurança alimentar grave: “é inadmissível”. Casemiro enfatizou a importância de se pensar a temática considerando recortes de desigualdades. “Quando a gente convoca o conceito de soberania alimentar, que é construído pela via campesina, estamos humanizando o conceito, pois trazemos o debate da alimentação saudável e adequada, o que chamamos de comida de verdade no Brasil. Ele convoca o direito dos povos e se relaciona com o exercício de ampliar e fortalecer o poder popular”, explicou.
“Um país que não consegue alimentar seu povo de forma justa nunca será soberano”, afirmou o militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Beto Palmeira. O convidado criticou a mediação do capital à alimentação: “por uma falha na formulação das políticas públicas, a alimentação se torna responsabilidade dos indivíduos. Como o alimento é uma mercadoria, para ter acesso, você precisa de dinheiro e, no capitalismo, algumas pessoas não terão emprego, é só analisar os dados do desemprego estrutural”. Para o militante, o Brasil saiu do mapa da fome de forma artificial, pois o cenário foi o resultado do aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, que apresentam grandes riscos à saúde. Segundo Palmeira, a missão da luta é garantir o direito à comida de qualidade. Por isso, considera que debater soberania alimentar é fundamental, pois engloba o “direito de os povos decidirem sobre o seu sistema de produção e consumo de alimentos e a possibilidade de pensar e organizar agricultura e alimentação a partir das necessidades da população, respeitando os territórios, as culturas e a natureza”.
O militante destacou que, apesar de o Brasil ser uma potência agrícola, a produção nacional segue os interesses externos. O país é um grande exportador de soja, milho, carne, mas precisa importar arroz e feijão, elementos base da alimentação nacional. “Um país que não decide a sua própria mesa, não decide seu destino”, declarou. Palmeira ainda criticou o uso da fome como “arma de guerra” por Estados e grandes corporações do agronegócio, citando exemplos como Chile, Cuba, Gaza e próprio Brasil. Assim, defendeu uma transformação social que coloque a soberania alimentar no centro da mudança. Apostou na integração dos povos do Sul Global, na demarcação dos territórios indígenas e quilombolas, na reforma agrária, no fortalecimento da agroecologia camponesa e em criar uma base produtiva e tecnológica própria brasileira. “Quem controla os alimentos controla a vida. Precisamos de um projeto em que a vida, e não o lucro, esteja no centro.”, reforçou.
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