Seminário de comunicação debate conhecimento produzido nas favelas-radardasaude

Joabe Antonio de Oliveira

08/09/2025

Luiza Gomes e Mariana Moebus (Cooperação Social da Fiocruz) e Cristiane d’Avila (COC/Fiocruz)

“A comunicação comunitária, historicamente, já produz seus próprios dados em palavras, títulos, fotografias, charges e rodas de conversa”, pontuou Gizele Martins, comunicadora popular e integrante da Frente de Mobilização da Maré, durante o seminário Testemunho: Circulando – Comunicação Comunitária como Política Pública. Gizele estava entre os 22 convidados presentes. Sua fala se juntou a outras que questionavam os critérios de legitimidade e os obstáculos políticos e financeiros para que o conhecimento produzido pela favela seja validado. O evento, realizado no Campus Maré da Fiocruz, reuniu ativistas da comunicação popular e comunitária, pesquisadores, profissionais da área e gestores públicos. Um dos temas centrais do encontro foi a produção de dados nas favelas e periferias a partir do conceito da geração cidadã de dados.

O seminário foi uma iniciativa do Observatório de História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), da Coordenação de Cooperação Social da Fiocruz (CCSP), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) – por meio do Dicionário de Favelas Marielle Franco (Wikifavelas) – e de comunicadores da Frente de Mobilização da Maré, do jornal Fala Manguinhos e do Instituto Raízes em Movimento, do Complexo do Alemão. A atividade contou com recursos do Edital de Apoio à Organização de Eventos Científicos, Tecnológicos e de Inovação no Estado do Rio de Janeiro da Faperj.

Pandemia e a falta de dados das favelas

Durante a pandemia de Covid-19, além dos desafios para implementar as medidas de isolamento e higiene recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os territórios de favela também enfrentaram a escassez de dados oficiais sobre a doença. Diante desse cenário, organizações populares e coletivos de comunicação comunitária assumiram a linha de frente no cuidado com seus territórios, não apenas na disseminação de informações confiáveis, mas também na arrecadação e distribuição de cestas básicas e mantimentos.

Representando o jornal Voz das Comunidades, Jonas di Andrade destacou a atuação do veículo durante a pandemia com a criação do Painel Covid-19 nas Favelas. “Percebemos que havia lacunas e começamos a nos questionar onde estavam as favelas nos dados oficiais. Então, criamos o painel para divulgar os números de contaminações e conscientizar as pessoas sobre a gravidade da situação, principalmente porque as favelas têm configurações diferentes de outros bairros”, afirmou.

Além dos dados sobre a doença, também faltaram informações sobre a fome durante o período pandêmico, como relatou Gizele Martins, integrante da Frente de Mobilização da Maré — coletivo criado por comunicadores populares durante a pandemia para fomentar ações de comunicação e distribuir cestas básicas. “Na Maré, tivemos que construir nossa própria estratégia de distribuição de mantimentos, sem apoio de órgãos públicos nem dados sobre a renda dos moradores. Ficou nas nossas mãos entender quem precisava mais de cestas básicas”, lembrou.

A disputa pela legitimidade dos dados

Apesar de seu papel essencial, a produção de dados por coletivos populares segue tendo sua legitimidade questionada pelas autoridades públicas e instituições. A coordenadora-executiva da Bem TV — organização da sociedade civil que atua com mídia e educação com adolescentes e jovens em Niterói e São Gonçalo —, Daniela Araújo, comentou as dificuldades de articulação com o Estado. “Realizamos muitos levantamentos sobre memória, ocupação dos territórios e cultura, mas ainda é difícil dialogar com o poder público. Nossa forma de coletar, analisar e sistematizar os dados é diferenciada, porque estamos construindo argumentos para garantir direitos”, afirmou.

Na outra ponta, a forma como a academia, a imprensa e as diferentes esferas de poder consideram e lidam com os dados – tida como única e exclusiva – também virou objeto de discussão. “O processo de construção de números como elementos que governam a nossa vida não é um processo autoevidente. Os números precisam ser disputados porque eles são produzidos socialmente. É fundamental se perguntar quem produz os dados, para que produz e como produz”, ponderou o historiador e pesquisador do Observatório de História e Saúde da COC/Fiocruz Luiz Alves, que mediou o encontro.

Às favelas interessam especialmente os dados, as informações e as narrativas que potencializem as transformações sociais nesses territórios: atraindo investimento, subsidiando políticas públicas e amplificando o direito da população local à Comunicação. Essa foi uma das questões trazidas por Jota Marques, comunicador popular e integrante da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). “Precisamos fazer com que esses dados fortaleçam a estruturação das políticas públicas. O dado é a palavra-chave do momento, mas ainda está atrelado aos mesmos grupos dominantes. O território precisa ter domínio sobre a pesquisa também. Na minha perspectiva, é isso o que buscamos quando falamos de comunicação comunitária”, afirmou.

Memória e registro das favelas

Além dos dados numéricos, também esteve em pauta o trabalho dos coletivos na produção de memória dos territórios. O coordenador e cofundador do Instituto Raízes em Movimento, David Amen, no Complexo do Alemão, falou sobre o Centro de Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão (Cepedoca), que atua como espaço de articulação de saberes e conhecimentos acadêmicos, técnicos e populares. O programa também funciona como observatório de políticas públicas, promovendo pesquisas e o desenvolvimento de metodologias.

“É necessário que o território conheça sua própria história a partir da ótica de quem a produz e a vive de fato. Esses dados também são fundamentais para pensar políticas públicas voltadas especificamente para aquele local. O Cepedoca nos permite realizar esse trabalho de consolidação e pesquisa, contribuindo para que essas políticas cheguem aos territórios de forma mais eficaz.”, afirmou.

Uma experiência recente que ilustra tanto processos participativos como um bom uso dos dados e saberes do território foi a realização do Fórum Popular do Complexo do Alemão, em 2022. O Instituto Raízes em Movimento, em parceria com outras organizações comunitárias, realizou uma série de oficinas junto à população que resultou no Plano de Ação Popular do Complexo do Alemão: Agenda 2030. O documento tem como objetivo estabelecer uma agenda de políticas públicas voltada para o território dialogando diretamente com os poderes Legislativo e Executivo. Além disso, reforça o protagonismo dos moradores na produção de dados e conhecimento sobre o território, propondo que as ações sejam construídas a partir das demandas e perspectivas da própria população local.

“Atualmente, estamos com um trabalho de pesquisa em algumas áreas que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deixou de lado. Fomos para três territórios: Travessa Laurinda, Lagoinha e Avenida Central – e estamos fazendo um comparativo dos dados de onde o PAC aplicou recursos”, explicou. “Acreditamos que a partir dessa união podemos provocar os órgãos públicos a darem uma atenção especial ao Alemão e, mais que isso, aplicar a experiência para outros territórios”, completou.

A documentação dessas histórias está longe de ser um processo acessível a todos. A construção da memória ainda é um campo afetado por condutas políticas e econômicas que reforçam privilégios e que deslegitimam outras formas de preservar e recontar histórias. “Quando estamos falando de dados e memória, estamos falando do poder e do domínio da escrita formal, acadêmica, eurocêntrica, patriarcal e branca. Essa centralidade da disputa não pode ser perdida”, afirmou Daniela Araújo, da Bem TV.

Por conta disso, as relações entre território e academia ainda têm muito para onde crescer e se aperfeiçoar. O coordenador do jornal Fala Manguinhos!, Fábio Monteiro, reforçou a importância da sensibilidade e do diálogo nessa troca. “A produção de memória vai muito da perspectiva de quem está realizando a pesquisa. Se queremos construir algo de baixo para cima, precisamos ouvir quem está naquele território e deixar o território falar por si próprio”, pontuou.

O registro dos saberes e ações populares feito por quem o vive e produz é um dos principais diferenciais do trabalho do Dicionário de Favelas Marielle Franco, iniciativa coordenada pelo Icict/Fiocruz, lançada em 2019 e que atua com a proposta de produção coletiva de verbetes em diferentes formatos e plataformas. O WikiFavelas, como também é conhecido, foi lembrado como uma das experiências institucionais que materializa esse compromisso de visibilizar a produção de conhecimento que vem das periferias – físicas e simbólicas.

“A produção de histórias das favelas não pode ser feita só a partir de uma perspectiva academicista que vai pedir uma certa formatação e, consequentemente, excluir muitas pessoas de contarem essas histórias. A primeira questão importante é essa disputa pelo formato, não dá para impor uma mesma regra sobre aquilo que a gente entende como válido e legítimo na academia”, afirmou Palloma Menezes, representante da iniciativa.

Em 2022, a plataforma lançou o projeto Memória Viva em parceria com a Vídeo Saúde – Distribuidora da Fiocruz, o Canal Saúde e o Plano 146x Favelas. A iniciativa reúne entrevistas com 12 lideranças comunitárias de favelas do estado do Rio de Janeiro para pensar o passado, presente e futuro dos territórios. “Partimos da ideia de que os moradores de favela têm que ser entendidos enquanto sujeitos políticos, produtores de conhecimento e não como objetos de pesquisa. Estamos sempre pensando em caminhos para que os dados produzidos pela favela sejam vistos como legítimos, independentemente da aproximação com instituições”, pontuou Palloma Menezes.

O projeto

O seminário faz parte da apresentação dos resultados do projeto Geração cidadã de dados – Cartografia dos coletivos de comunicação comunitária para promoção da saúde, realizado pela COC/Fiocruz, pela Coordenação de Cooperação Social da Presidência da Fiocruz, pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) – por meio do Dicionário de Favelas Marielle Franco (Wikifavelas) – e por comunicadores da Frente de Mobilização da Maré, do jornal Fala Manguinhos e do Instituto Raízes em Movimento, do Complexo do Alemão.

O primeiro produto do encontro será uma minuta de política (policy brief) – documento embasado em dados, pesquisas e narrativas que pretende contribuir com o debate sobre políticas públicas. A peça será encaminhada como proposta para a Câmara Técnica responsável pela elaboração da Política de Comunicação Pública do Sistema Único de Saúde (SUS) do Conselho Nacional de Saúde.

Imagem: Ricardo Borges – Folhapress


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